9.8.08

A PATRÍSTICA

Santo Agostinho e a Patrística Pré-agostiniana
A Patrística Pré-agostiniana
Características Gerais
Com o nome de patrística entende-se o período do pensamento cristão que se
seguiu à época neotestamentária, e chega até ao começo da Escolástica: isto é,
os séculos II-VIII da era vulgar. Este período da cultura cristã é designado com
o nome de Patrística, porquanto representa o pensamento dos Padres da Igreja,
que são os construtores da teologia católica, guias, mestres da doutrina cristã.
Portanto, se a Patrística interessa sumamente à história do dogma, interessa
assaz menos à história, em que terá importância fundamental a Escolástica.
A Patrística é contemporânea do último período do pensamento grego, o período
religioso, com o qual tem fecundo contato, entretanto dele diferenciado-se
profundamente, sobretudo como o teísmo se diferencia do panteísmo. E é também
contemporâneo do império romano, com o qual também polemiza, e que terminará por
se cristianizar depois de Constantino. Dada a culminante grandeza de Agostinho,
a Patrística será dividida em três períodos: antes de Agostinho, período em que,
filosoficamente, interessam especialmente os chamados apologistas e os padres
alexandrinos ; Agostinho, que merece um desenvolvimento à parte, visto ser o
maior dos Padres; depois de Agostinho vem o período que, logo após a
sistematização, representa a decadência da Patrística.
O II Século
Os Apologistas e os Controvertistas
A Patrística do II século é caracterizada pela defesa que faz do cristianismo
contra o paganismo, o hebraísmo e as heresias. Os padres deste período podem-se
dividir em três grupos: os chamados padres apostólicos , os apologistas e os
controversistas . Interessam-nos particularmente os segundos, pela defesa
racional do cristianismo contra o paganismo; ao passo que os primeiros e os
últimos têm uma importância religiosa, dogmática, no âmbito do próprio
cristianismo.
Chamam-se apostólicos os escritos não canônicos, que nos legaram as duas
primeiras gerações cristãs, desde o fim do primeiro século até a metade do
segundo. Seus autores, quando conhecidos, recebem o apelido de padres
apostólicos, porquanto floresceram no templo dos Apóstolos, ou os conheceram
diretamente, ou foram discípulos imediatos deles.
Costuma-se designar como o nome de apologistas os escritores cristãos dos fins
do segundo século, que procuram de um lado demonstrar a inocência dos cristãos
para obter em favor deles a tolerância das autoridades públicas; e provar do
outro lado o valor da religião cristã para lhe granjear discípulos. Seus
escritos, portanto, são, por vezes, apologias propriamente ditas, por vezes,
obras de controvérsia, às vezes, teses. E são dirigidas às vezes contra os
pagãos, outras vezes contra os hebreus. Os apologistas, mais cultos do que os
padres apostólicos, freqüentemente são filósofos - por exemplo, São Justino
Mártir - ainda que não apresentem uma unidade sistemática; continuam filósofos
também depois da conversão, e se esforçam por defender a fé mediante a
filosofia. Para bem compreendê-lo, é mister lembrar que o escopo por eles visado
era, sobretudo, por em focos os pontos de contato existentes entre o
cristianismo e a razão, entre o cristianismo e a filosofia. E apresentavam o
cristianismo como uma sabedoria, aliás, como a sabedoria mais perfeita, para
levarem, gradualmente, até à conversão os pagãos.
O maior dos apologistas é certamente São Justino. Flávio Justino Mártir nasceu
em Siquém na Palestina em princípios do segundo século, e morreu mártir no ano
170. Depois de Ter peregrinado pelas mais diversas escolas filosóficas -
peripatética, estóica, pitagórica - em busca da verdade para a solução do
problema da vida, abandonando o platonismo, último estádio da sua peregrinação
filosófica, entrou no cristianismo, onde encontrou a paz. Ufana-se ele de ser
filósofo e cristão; leigo embora, Justino dedicou sua vida à difusão e ao ensino
do cristianismo. Imitando os filósofos, abriu em Roma uma escola para o ensino
da doutrina cristã. Suas obras são duas Apologias - contra os pagãos - e um
Diálogo com o judeu Trifão - contra os hebreus. Escreveu suas obras nos meados
do segundo século.
Justino procura a unidade, a conciliação entre paganismo e cristianismo, entre
filosofia e revelação. E julga achá-la, primeiro, na crença de que os filósofos
clássicos - especialmente Platão - dependem de Moisés e dos profetas, depois da
doutrina famosa dos germes do Verbo, encarnado pessoalmente em Cristo, mas
difundidos mais ou menos em todos os filósofos antigos.
O III Século:
Os Alexandrinos e os Africanos
O terceiro século apresenta um interesse particular pelo que diz respeito ao
pensamento cristão. Tentou-se um renovamento do paganismo com bases no panteísmo
neoplatônico e nos cultos orientais, fundidos numa característica síntese
filosófico-religiosa em oposição ao cristianismo, que já ia afirmando mesmo
culturalmente. Os Padres deste período polemizam filosoficamente com os
pensadores pagãos, levados a estimarem seus adversários.
O cristianismo, sem mudar a sua fisionomia original, está em condições de
desenvolver do seu seio um pensamento, uma filosofia, uma teologia, que
representarão a sua essência doutrinal. Daí a distinção que então se afirmou
entre os simples fiéis e os gnósticos - sábios - cristãos. Este gnosticismo
cristão se afirmou especialmente em Alexandria do Egito, o grande centro
cultural da época, mesmo do ponto de vista católico. Naquele famoso didascaléion
, naquela celebrizada escola catequética, espécie de faculdade teológica, foram
luminares Clemente e Orígenes.
O cristianismo filosófico é próprio e característico dos padres alexandrinos,
que vivem na tradição cultural helenista, enaltecedora e potenciadora dos
valores intelectuais, teoréticos, especulativos, metafísicos, dos quais teremos,
em tempo oportuno, o primeiro sistema orgânico de teologia cristã, graças a
Orígenes. É, entretanto, hostilizado pelos padres chamados africanos,
pertencentes não à África oriental, ao Egito, mas África ocidental, latina, que
se ressentem, por conseguinte, do espírito prático, pragmatista, jurídico,
moralista latino - que produziu os estóicos e os cínicos romanos - em oposição
ao gênio grego. Se bem que entres os padres africano-latinos apareçam vulto
notáveis, como por exemplo Tertuliano, os padres africanos - bem como os padres
latinos em geral - não apresentam interesse particular para a história da
filosofia.
Clemente Alexandrino - Tito Flávio Clemente - nasceu no ano 150, provavelmente
em Atenas, de família pagã. Converteu-se ao cristianismo talvez levado por
exigências filosóficas; desejoso de um conhecimento mais profundo do
cristianismo, empreendeu uma série de viagens em busca de mestres cristãos.
Depois de ter visitado a Magna Grécia, a Síria e a Palestina, foi, pelo ano 180,
para Alexandria do Egito, onde o seu espírito achou finalmente paz junto do
eminente mestre Panteno. Falecido este no ano 200, Clemente foi chamado para
dirigir a famosa escola catequética, cabendo-lhe a glória de ter o grande
Orígines entre seus discípulos. Devido às perseguições anticristãs do imperador
Setímio Severo, que mandou fechar a escola, Clemente teve de suspender o seu
ensino alguns anos depois. Retirou-se para a Ásia Menor, junto de um seu antigo
discípulo, o bispo Alexandre de Capadócia, e morreu nessa cidade entre 211 e
216.
Embora as preocupações de Clemente sejam sobretudo morais e pedagógicas, e os
meios empregados, satisfatoriamente, religiosos e cristãos sobretudo, valoriza
ele também, e grandemente, a filosofia, à maneira de Justino, sendo ademais
dotado de uma erudição prodigiosa e de uma cultura incomparável. As obras
principais de Clemente são: o Protréptico - isto é, o Verbo promotor da vida
cristã - pequena apologia em doze capítulos, perfeitamente acabada na forma e no
conteúdo; o Pedagogo , em três livros, apresentado no primeiro o Verbo como
educador das almas, e indicando nos demais dois livros os vícios mais graves,
que os cristãos devem evitar; os Strômata - tapetes - que é uma coleção de
pensamentos, considerações, dissertações filosóficas, morais e religiosas, de
interesse especialmente ético.
Filosoficamente importante e característica é a distinção que faz Clemente dos
cristãos em simples fiéis e gnósticos , isto é, sábios, perfeitos. O gnóstico
cristão, diversamente do simples fiel ou crente, é consciente de sua fé,
justificando-a e organizando-a racionalmente, filosoficamente. "Querendo
harmonizar a doutrina cristã com a filosofia pagã, acentuava demasiadamente a
última, negligenciando um tanto a Sagrada Escritura e a Tradição".
Discípulo de Clemente, Orígenes, chamado adamantino por sua energia
incomparável, é o maior expoente filosófico da escola alexandrina. Nasceu em
Alexandria do Egito, pelo ano 185, de família cristã. O precoce menino recebeu
do pai, Leônidas, a primeira formação literária e, sobretudo, religiosa. Durante
a perseguição de Septímio Severo, Orígenes, desprezando os mais graves perigos,
foi encarregado pelo bispo de Alexandria, Demétrio, da direção da famosa escola
didascaléion , que o seu mestre Clemente teve que abandonar. Tinha então
Orígenes dezoito anos. Aos vinte e cinco, sentindo a necessidade de conhecer
profundamente as doutrinas que desejava combater e querendo completar a sua
formação, escutou - como Plotino - as lições de Amônio Saca. Empreendeu então
longas viagens para se instruir, sobretudo, religiosamente, e para atender aos
desejos de grandes personagens que queriam consultá-lo. Ordenado sacerdote no
ano 230 pelos bispos de Cesaréia e de Jerusalém, contra a vontade de seu bispo,
de volta à pátria, foi proibido por este de ensinar e foi condenado, devido
também a algumas opiniões heterodoxas contidas na sua grande obra Sobre os
Princípios , e também por ciúme, talvez, no dizer de São Jerônimo. Retirou-se
então Orígenes para a Palestina, abrindo em Cesaréia uma escola teológica (
chamada depois neo-alexandrina - , que superou a de Alexandria pelo seu caráter
científico. Aí lecionou ainda durante vinte anos, falecendo em Tiro pelo ano
254.
A atividade literária de Orígenes não conhece igual, atribuindo-se-lhe milhares
de obras. Prescindindo dos escritos exegéticos e as céticos, que não nos interessam, mencionamos a obra Sobre os Princípios e os oito livros Contra Celso .
Por princípios Orígenes entende os artigos principais do ensino da Igreja, e
as verdades primordiais deduzidas mediante a razão teológica das premissas
reveladas, por falta de revelação formal. A obra Sobre os Princípios nos
proporciona a ciência baseada na Revelação, e representa uma suma teológica
verdadeira e própria. Representa, talvez, a primeira grande síntese doutrinal da
Igreja, segundo a tendência metafísica dos doutores orientais. Granjeou ao autor
grande nomeada e contém o origenismo , que depois suscitou a grande polêmica
origenista. A obra Contra Celso é a mais célebre de Orígenes sob o aspecto
apologético. É uma resposta à obra Sermão Verdadeiro de Celso, filósofo pagão.
Antes de tudo, declara Orígenes que a melhor apologia do cristianismo é
constituída pela vitalidade divina da Igreja, isto é, pela sua força e virtude
para a reforma moral dos homens e pela sua difusão universal, apesar dos ataques
dos adversários. A maior parte do escrito é, todavia, dedicada ao exame atento e
pormenorizado das profecias, dos milagres e das afirmações solenes de Cristo,
visto que Celso, que tinha estudado as fontes do cristianismo, o ataca em todos
os pontos. Nesta obra, Orígenes ostenta uma erudição extraordinária, uma
serenidade nobre e inigualável, bem como uma fé inabalável. Orígenes pode ser
considerado o verdadeiro fundador da teologia científica, bem como o primeiro
sistematizador do pensamento cristão em uma vasta síntese filosófica.
O IV Século:
Os Luminares de Capadócia
O século quarto, especialmente a Segunda metade, representa a idade de ouro da
Patrística. Basta lembrar, para a igreja oriental, Atanásio, o malho do
arianismo, os luminares de Capadócia - Basílio, Gregório Nazianzeno e Gregório
de Nissa - , e João Crisóstomo, o mais celebrado representante da escola de
Antioquia; para a igreja ocidental, Ambrósio de Milão e Jerônimo. Os padres
dessa época se exprimem em aprimorada forma clássica e possuem uma profunda
cultura filosófica. Os maiores dentre eles são solidamente formados na solidão
monástica e ascética e pertencem, geralmente, às altas classes sociais. A igreja
católica, declarada livre pelo Edito de Milão, protegida por Constantino,
torna-se religião do estado com Teodósio. Estas condições de paz e de
privilégio, eram certamente favoráveis à cultura cristã.
Entretanto, a grandeza da Patrística, no quarto século, não é tanto científica,
quanto dogmática, teológica. A teologia, sobretudo graças aos luminares de
Capadócia, torna-se uma construção intelectual sistemática, imponente, devido
naturalmente à filosofia, à lógica aristotélica, que proporcionam o instrumento,
o método, para a precisão e a organização do dogma. As grandes heresias da época
obrigaram os padres a defender racionalmente, filosoficamente, a doutrina
católica, atacada especialmente por Ário (256-336), padre alexandrino oriundo da
Líbia, negador da divindade do Verbo. A heresia ariana - arianismo - foi
condenada pelo concílio de Nicéia (325), sendo Atanásio o mais destacado e forte
opositor.
São João Crisóstomo, de Antioquia, nasceu de família ilustre, pelo ano 344.
Recebeu uma educação clássica aprimorada, estudando retórica, filosofia,
direito, que, depois de batizado, valorizou cristãmente na solidão e no
ascetismo. Padre em Antioquia, e depois bispo de Constantinopla, faleceu,
degredado pela fé, em 407. É significativo neste grande prelado o senso profundo
da vaidade do mundo, e a grande estima do cristianismo, concebido como ascética.
Também os grandes representantes da escola neo-alexandrina, os luminares de
Capadócia, foram grandes testemunhas do caráter fundamentalmente ascético do
Cristianismo. São Basílio, nascido em Cesaréia de Capadócia pelo ano de 330 de
família rica e cristã, fez longos e aprofundados estudos, aperfeiçoando-se em
Atenas. Recebido o batismo, abandona o mundo e se retira para a vida ascética,
organizando a vida solitária dos que o seguiram, e escrevendo uma Grande Regra e
uma Pequena Regra , para a vida monástica, em que a atividade dos monges é
distribuída entre o trabalho, o estudo, a oração, pelo que será considerado o
legislador do monaquismo oriental. Trata-se, porém, de regras morais, e não
jurídicas, destinadas a um monaquismo culto, aristocrático. Grande admirador de
Orígenes, insigne promotor da beneficência cristã quando bispo de Cesaréia, e
organizador da vida monástica na Capadócia, faleceu em 379. Também São Gregório,
chamado Nizianzeno, nasceu pelo ano 330 em Capadócia, de família cristã, fez
estudos aprofundados, que aperfeiçoou em Atenas. Também ele admirou e praticou a
vida ascética com o amigo Basílio, compartilhando com ele a admiração para com
Orígenes. Bispo de Sásima antes e, em seguida, de Constantinopla, inflamou os
fiéis com a sua pregação brilhante e comovedora. Aristocrático e delicado, pouco
afeito à vida prática, retirou-se depois para a solidão, em conformidade com o
seu ideal ascético e contemplativo, falecendo pelo ano 390.
São Gregório de Nissa foi o maior dos luminares de Capadócia e, talvez, de todos
os padres gregos sob o aspecto especulativo e filosófico. Irmão de Basílio,
nasceu pelo ano 355 em Cesaréia e recebida uma informação cultural aprimorada,
foi destinado ao estado eclesiástico; entretanto, deixou-se desviar da sua
vocação, foi professor de retórica e casou-se. As exortações do irmão e de
Gregório Nazianzeno persuadiram-no da vaidade do mundo, até que afinal,
abandonando a cátedra de retórica, retirou-se para a vida ascética
contemplativa. Em seguida, foi feito bispo de Nissa, cidadezinha da Capadócia,
primando pela sua cultura teológica e filosófica. Faleceu, provavelmente, em
395. Gregório de Nissa é o maior filósofo dos padres gregos. Esforça-se para
mostrar que os dados da razão e os ensinamentos da fé não se hostilizam, mas se
harmonizam reciprocamente. Possui, como verdadeiro filósofo, o gosto das
definições claras e das classificações metódicas. Como em teologia é origenista,
em filosofia é neoplatônico.


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